Um dia vamos passar
a limpo a nossa história.
Deixar para trás
tudo que não foi bom, limpo, belo, moderno, perfeito.
Um dia o mundo
ainda vai ser do jeito que a gente acha que deve.
Nesse dia todo
mundo vai andar na linha
porque nesse mundo
perfeito
quem não andar
direito
não vai ter esse
direito.
Um dia a gente
ainda vai botar um freio neste mundo.
Todos no mesmo
compasso
Marchando no mesmo
passo
Pensando do mesmo
jeito
Conforme a mesma
cartilha
Rezando pelo mesmo
catecismo
Sempre a mesma
ladainha.
A desigualdade será
revogada por decreto
e segundo a letra nova
da lei
todo preto, pardo,
bugre ou cafuzo
todo molambo de rua
todo farrapo de
gente
num rompante, por
decreto
será branco, belo, rico e feliz.
E quem pensar o
contrário
criminoso
refratário
não terá mais o
direito
de expressar seu
preconceito.
Um dia a gente vai
reescrever todos os livros
recontar todos os
contos
e nos clássicos
reeditados
os desvios de raça,
credo, ideias e costumes corrompidos
serão amputados.
Porque num mundo
perfeito
os gênios de outros
tempos imperfeitos
devem morrer outra
vez
renascendo mais
corretos
em edições
revisadas
na norma culta
tramadas
versando somente o belo,
o bom,
o límpido e
edificante substrato de um mundo idealizado
de uma vida
perfeita
onde seres
imperfeitos
tenham conduta correta.
Um dia faremos um
mundo
em que as palavras
cruas
feias, sujas, chulas
e malvadas
não morem no
dicionário.
Um dia teremos
artistas
todos perfeitos
autistas
desfiando
platitudes
num rosário de
virtudes
desenhando a alma
humana
sem vícios, pura
virtude
numa sociedade
ordeira
generosa,
hospitaleira.
E ai de quem,
descontente,
queira dizer o
contrário!
Porque nos tempos
de hoje
inda há muito
salafrário
escrevendo
despautérios
dedo em riste na
ferida
dizendo que o fel
da vida
é o alimento
diário.
Talentos
desperdiçados
pervertidos e perversos
insistem em ver no
mundo
os malefícios
por baixo dos
artifícios.
No nosso mundo
perfeito
essas vozes
dissonantes
não poderão
existir.
Sejam todas
afogadas,
pra sempre silenciadas
para que reine a
bondade
por todas as latitudes
no terreal paraíso
de nossas sãs
intenções.
Pode ser que o
mundo seja
ainda escroto e
sacana
ainda vil e cretino
velho berço de
opressão
passagem de
servidão
e o inimigo do
homem
seja ainda o
próprio homem.
Que seja, porém que
os pobres
respeitem a autoridade
e salve-se a propriedade
que alguns lograram
ganhar
Que seja imperfeito
o mundo
pois é de fato
imperfeito
mas a arte, o
noticiário,
a escola e o
dicionário
sejam todos concertados
de tal maneira
orquestrados
que a nossa
sociedade
tão imperfeita de
fato
por muito
fotorretoque
fique bem no seu
retrato
a ponto de dar
inveja
às gerações
porvindouras.
Esse é o sonho
secreto
o delírio
autoritário
de quem quer forjar
um mundo
politicamente
correto.
AC – Sampa,
01/11/2012.