terça-feira, 6 de abril de 2021

Um brinde à Musa esquálida

Há dias não escrevo uma linha. As poucas que rascunhei foram descartadas. Meu amigo, o cesto de papeis, também teve pouco trabalho, pois as tolices anotadas foram escassas e, a bem da verdade, nem chegaram ao papel. Até o teclado tirou folga nesses dias de silêncio, quando as musas jejuaram e o poeta sem assunto foi beber em outras fontes, reparar noutras paragens. Eu, que sempre tive horror da mesmice, em mim mesmo me refugio que outro sítio não me resta numa hora como esta. E o poeta ensimesmado que teria pra dizer, que não fosse mais do mesmo, já tantas vezes redito, ressoado e repetido? Se o poema ressentido e reprisado, repetido e redundante, repisado e repetente, só para provar sua tese, reluz e tomba no escuro, quem sou eu pra lhe dar vida? Voar em asas de empréstimo, sem um sopro criativo, sem um rasgo de invenção, reformulando conceitos, revisitando o passado e restaurando guardados? De que serve, ao poeta, o poema reformulado, retinto e reformatado? Ao leitor talvez agrade o recitativo cansado, cadências já conhecidas, ideias preconcebidas, velhos temas retomados em formatos consagrados. Mas ao poeta não basta o artesanato do verso, pelo menos não a esse indigitado sujeito que, por acaso, sou eu. Sou avaro de meus versos, zeloso de meus tesouros, econômico em palavras. Não gasto vocabulário ao gosto do calendário, versos ao léu, perdulário, poeta de anedotário a importunar os amigos com seu poema diário. Respeito a verborragia, mas a prosa cotidiana para mim não é poesia, ainda que esquadrejada em metro bem lavorado, ainda que formatada em fórmula consagrada, ainda que engaste rimas em prosa metrificada. Também não basta uma ideia, ainda que criativa, porque nem toda proposta se presta a uma melopeia. Tem vezes que soam vozes que quase escrevem sozinhas, tem outras que o pensamento precisa ser capturado, recortado e costurado, como ocorre neste caso, em que o jejum prolongado produziu tal desconforto que o poeta abstinente foi escavar no semiárido um poço de água salobra a fim de dessedentar-se, antes que a musa esquálida faleça desidratada.

AC – Sampa, 06/04/2021