terça-feira, 3 de abril de 2012

Hécuba - Monólogo da Criança Morta

(Da tragédia "As Troianas", de Eurípedes)

HÉCUBA
- Ah, meu querido. Se ao menos tivesses morrido pela pátria, depois de desfrutar a mocidade, o casamento, a realeza, terias sido mais feliz.
Pobre cabeça! Como está ferida e tanto! Arrancaram quase todos os cabelos que tua mãe tanto gostava de pentear e beijar. Seu rosto lindo, esfacelado, ensanguentado.
Não posso mais! Meu olhar não suporta este espetáculo!
Meu pobre infeliz, mentias sem saber, quando me prometias: “Vovó, quando morreres cortarei cachos dos meus cabelos e jogarei sobre teu túmulo, na hora da despedida”.
Mas não choraste a minha morte. Sou eu, tua avó, sem pátria e sem filhos, que irei sepultar teu delicado corpo tão maltratado!
E que palavras um poeta escreveria na lápide do teu pequeno túmulo? "Aqui jaz uma criança frágil e indefesa, que, por ter aterrorizado os bravos guerreiros gregos, foi por eles trucidada". Que vergonha para a Grécia, tal epitáfio.
Ah, gregos que tanto exaltais as vossas façanhas na guerra! A força da razão vos há de impedir qualquer sentimento de orgulho, depois deste homicídio brutal. Que ameaça poderia esta criança trazer para a Grécia? A possibilidade de um dia poder reerguer Tróia do meio destas ruínas? Miserável então o vosso mérito! Justo agora quando os troianos jazem por fim aniquilados, tivestes medo de uma frágil criança!
Ah, meu querido! Que triste o teu fim! De teu pai, herdas ao menos o escudo de bronze que será teu féretro. O mesmo que já protegeu o braço forte de Heitor, perdeu agora o seu valente guardião.
Venham, mulheres, e tragam, se ainda houver, alguns adornos para que eu prepare o morto.
A desgraça não nos deixou em condições de te render correta homenagem. Haverás de receber o que nos resta.
A criança que se alegra com um instante de felicidade e o julga infindável, é insensata. A sorte é instável como um homem embriagado que ora pende para um lado, ora para outro. Quem poderá dizer que sempre foi feliz?

(Fiz a adaptação desta cena para a peça "Crer para Ver", de e com Ione Prado, encenada em São Paulo, 1997.

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